As Confissões da Bahia
"As Confissões da Bahia" foi uma surpresa e tanto. A capa já dá uma dica bem clara sobre o tom da HQ e abri-la aleatoriamente pode ser um pouco constrangedor em público. Mas esse é também um dos maiores méritos da obra: é segura de si sem rodeios, sem censura, sem hesitação, sem vergonha. E talvez por isso cause espanto.
O enredo, por si só, não é mirabolante: Um membro do clero, o padre português Heitor Furtado de Mendonça, chega até a Bahia em missão para ouvir as confissões dos pecadores e expiar a danação de Salvador. Isso se deu em 1591, ao Santo Ofício da Inquisição — coisa que não é tão comentada aqui no Novo Continente, parecendo algo só da Europa, mas que não apenas repercutiu em nosso país quanto também aconteceu aqui. Os capítulos são os relatos coletados pelo inquisidor, com pecados que vão desde as coisas mais simples, como roubar burros, quanto a prática de religiões pagãs, orgias e relações homoeróticas.
Se hoje parece tão escandaloso, na época era motivo de degredo. Mas aí mora outra questão: muitas dessas pessoas já tinham sido degredadas da metrópole, para onde iriam?
E outra questão, onde mora o verdadeiro absurdo? Cometer tais práticas consensuais (bom, exceto talvez o roubo de burros), ou ser tão hostil à modos de vida que não são seus?
Sobre os aspectos visuais da HQ, chama atenção algo que tem tanto uma significação artística quanto uma implicação de prática para fazer a obra: o tempo "corrente" da HQ, que é o inquisidor vivendo na Bahia e dialogando brevemente com outros membros do clero ou os pecadores, os quadrinhos são em preto e branco, mais monótonos. No entanto, as confissões em si, em que somos jogados nos "escândalos" e na blasfêmia, tudo é colorido, absurdo, obsceno, vivo e pulsante. E essas partes são cada uma em um estilo, pois são ilustradas por artistas diferentes. Acho curioso porque economiza tempo (vários artistas trabalhando em suas partes respectivamente) e também imprime essa camada de significação de que cada experiência é única e exuberante à sua forma.
Mesmo sendo até divertida e rápida de ler, não deixa de ser uma leitura violenta quando pensamos não apenas nas punições dessas pessoas — por exemplo, a mulher que se relacionava sexualmente com outras — mas também quando pensamos nessa violência religiosa, patriarcal e colonial. O prefácio e o posfácio são muito conscientes da obra, do legado histórico e detalhista que se permitiram explorar sem censura. Um espetáculo à parte.
Não dá para recomendar para todo mundo, é claro. Mas não é, de modo algum, demérito da obra. São tabus e vergonhas que, de algum modo, carregamos como sociedade até hoje.

